Escreva. Faça parar a vida, no caderno, na rua, na solidão do computador, na carona da circular, na parede do banheiro, no trem, escreva!
_E por que queres tanto meu senhor?
_Porque eu quero vê-la.
_Ver-me?
_Sim. Ler as palavras que insistes em esconder-me, lhe revela os pensamentos, lhe revela as idéias, as lutas e, sobretudo, lhe revela a alma. Deixa-a nua. Completamente. E deveis saber que as mulheres são lindas. Mostre-se.
_Que bom, vejo-a ser uma pessoa de vasta inteligência. Mas, o que me diz, vais escrever algo e mostrar-me?
_Não!
_E por que não menina?
_Porque não quero que me vejas despida. Tenho vergonha da minha nudez. Estou fora dos padrões estéticos (poéticos) aceitáveis. Peco nas celuligrafias, desconheço regras de estriação...
_Huumm, compreendo. Mas não se importe com os “pecados” que mencionou, praticamente não difere das pessoas a vossa volta e, mesmo que diferenciasse, repito: é coisa pouca, temos outras causas importantes para nos ocupar.
_Entretanto, se a vergonha for, mostrar-se nua, tudo bem, nós temos medo do que as pessoas podem pensar ao nos ver nus.
_Sim, a vergonha és esta mesma que acaba de discorrer, senhorito.
_E então, não quer despir-se mesmo?
_Que atrevido!
_Você entendeu. O que me diz? Mostre-se, deixe-me ver sua alma, através das palavras que escreve!
_Ok, você venceu e os vencedores merecem batatas.
Arrancou do bolso uma grande batata selecionada do campo e lançou-a com extrema força no senhorito. Ele, em pé, rapidamente encolheu-se e moveu os braços e mãos para proteger o rosto. Passou raspando. Quando acalmou-se, olhou-a: ela ouvia blues em um grande fone de ouvidos e lixava as unhas, o fundo branco, com o semblante tranqüilo.
Esticou o indicador, deu três batidinhas no ombro da moça que trajava um vestido cor-de-rosa lindo:
_Sim, pois não, em que posso ajudá-lo senhor?
Que loucura – pensou.
Ao invés de dizer qualquer outra palavra, a moçoila preferiu apontar o dedo para um móvel estacionado ao lado deles. Um livro repousava solitário sobre o criado mudo.
_O que é isso?
_Um livro!
_Estou vendo!
_Então por que perguntas?
_Ah, seja gentil, sou tão educado. Veja o trabalhão que estou tendo. Só quero lê-la, só isso.
_Só isso? Que pena – falou olhando para a lixa e as unhas.
_Seja gentil! – disse sorrindo.
Ganhou outro sorriso de volta. Lembrou-se do livro. Foi em sua direção, mas sentiu-se travado. Lucy agarrou-o pela camiseta, impedindo-o de alcançar o livro dourado.
_Espere – disse harmoniosamente.
_Pronto, agora sim!
_O que você fez?
_Lembrei-me que precisava enviar vibrações positivas pra mamis. Ela pediu-me, ia fazer um curso para aprender a ser feliz - disse-me que agora - que a felicidade era questão de dias! Então, acabei de mandar as vibrações senão depois podia esquecer-me.
Não entendeu muito bem aquilo, estava impaciente, queria abrir logo aquele livro. O livro dourado.
_Posso? – disse desviando o olhar em direção ao livro.
_Pode!
Segurou-o. Não era exatamente um livro, mas um caderno de anotações. E, percebia-se logo, havia muitas coisas escritas, marcas de um caderno que vai de cá para lá a todo instante. Resolveu abrir numa página aleatória, escritos em azul:
Assim como quero aprender um pouquinho de cada religião e ir pro céu com todas elas
Quero aprender cada pouquinho do seu corpo; observar atenta a sujeira escondida na sua unha, achar as perebas e delas cuidar;
beijá-lo na testa, entre as sobrancelhas, descobrir as pintas, sugar o cheiro da tua boca e pele...
Não vou me aborrecer com a sua cabeça gorda de esquecer todas as coisas, talvez meu pai tenha sido assim algum dia; nem vou aborrecer com o seu andar torto e seu bafo de onça, no fim do dia
Toda vez que ver uma notícia sobre luxo, naquele jornaleco de merda ou encontrar o livro da Patrícia Mello num sebo barato
Provavelmente me recorde. Toda vez que ouvir alguém divagando sobre Comte e lembrar daquele seu papo furado que não levava a nada, de divagações vagas;
Ou quando vier com aquela estória de felicidade em todos os momentos da vida
Nem vai fazer diferença se me beijares o beiço ou a vulva, contanto que beije.
Não fará diferença se trará um copo de leite ou uma cesta de café na cama, contato que o faça quando estiver afim.
Nem fará diferença se fume maconha, cigarro ou o que quiser, com a condição de que seja lá do outro lado da rua, meus pulmões são delicados;
...
Não terminou de ler. Havia mergulhado na intensidade daquelas palavras e, quando se deu conta ergueu a cabeça para ver o que Lucy fazia. Os quatro olhos se encontraram, refletidos um no outro, ela fitava-o, ansiosa, sedenta, pronta para dizer:
_Agora que estou nua, é a sua vez de despir-se. O tempo está passando e já demoras demais...
4 comentários:
Eu quero ser vc qdo crescer pq "Estou fora dos padrões estéticos (poéticos) aceitáveis.", pq ainda não aprendi a escrever com tanta simplicidade e ser intensa ao mesmo tempo. E adoraria muito ter sempre esse monte de coisa para contar.
Parabéns!
Bj pra ti
LuPaiva
parabéns!
ps: isso apenas parece real, ou...
rs.
Um beijO!
Adorei. Um tiro certeiro o texto. Direto. Marcante. Posto que é chama.
Camilla Tebet
www.essepapo.nafoto.net
Acho legal como a gente consegue se expressar através de poucas palavras, no caso uma só. E aqui vai:
CA-RA-LHO! :)
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